quinta-feira, 3 de maio de 2018

[Conto] A mulher e o polvo, de Mauricio Gomes


A MULHER E O POLVO

Um imenso pássaro passa pela claridade da sua janela. Tão rápido que ela não conseguiu vê-lo. Nesta noite, ela conheceu o silêncio do céu.
Vivia só. A noite era mais leve do que seu olhar. Sentia a dor do silêncio e da solidão. Morava em um apartamento de 40 metros quadrados, para ela, era enorme, os quatro cômodos faziam ecos como se estivesse em uma caverna inexplorada, aguardando uma carícia ágil de uma geometria impensada. Tudo que restava, era habitar os espaços finitos e infinitos de sua morada.
Às vezes, ouvia gritos da noite profunda, também frágil e solitária, e o tédio das horas intermináveis batia na vidraça da janela do seu quarto.
Tinha apenas as palavras de um livro que lia e relia, o Atlas Menmosyne, de Aby Warburg. Era seu quebra-cabeça, a sua tática de sobrevivência nas noites incongruentes. Um livro apropriado que ressoa sobre corpos e mentes e espaços silenciosos, como um fantasma que visita uma casa sem moradas, e lá só encontram o vazio e o pó e o eco.
Na parede da sala, uma pintura, um jardim de rododendro, tentava florir o ambiente tímido. Virgínia era seu nome.
Uma bibliotecária. Uma funcionária pública. Tinha 33 anos.
Resolveu, naquela noite que já ia tarde, deixar de ser silenciosa entre as flores de rododendro e sobre a luz que a desnudava, debaixo de suas pálpebras, mordeu a noite e como um relâmpago que sangra o céu, em um instante sempiterno, ela decidiu que teria uma companhia.
Não um gato.
Não um cachorro.
Não um rato.
Não um porquinho-da-índia.
Não um peixe.
E sim um polvo.
Depois desta decisão resoluta, sem titubear, ela amanheceu com vontades e desejos e ouvia de Debussy, O Martírio de São Sebastião.
Era sábado, naquele dia. Um céu brocado. Um céu vestido para cobrir Virgínia.
Pediu ajuda ao deus google. Queria saber onde comprar um polvo. Morava em uma cidade cosmopolita, tinha certeza que encontraria. São Paulo se acha de tudo.
Encontrou. Sua pulsação alterou. Ficou ansiosa. Desejava entrar naquele mundo aquático e respirar melhor. Lá, passou não mais a contemplar o vazio, lá, a vida era aquosa e porosa e escorregadia, um mundo onde nada é fixo. Conseguiu comprar, só que antes precisava instalar um tanque, controlar o nível de oxigênio e o aquário devia ser totalmente vedado (imposição do vendedor), por ser um animal invertebrado e inteligente, não se pode correr o risco dele fugir, e outras recomendações, ele deve ser criado sozinho, qualquer outro animal no mesmo ambiente será refeição para o polvo; sua alimentação são crustáceos, e como disse o vendedor “ele adora peixinhos vivos”, camarões sem casca e sardinhas. E o polvo? Estava à sua espera, como uma criança órfã, ou melhor, como um insinuante e predador? Ela ainda não sabia nada dos seus hábitos, das suas crises, das suas manias, dos seus desejos, enfim, era um desconhecido que iria habitar outras águas desconhecidas.
Ele foi batizado, agora era Isidore Ducasse.
Sim, era um macho. Um belo exemplar de macho.
Virgínia não se sentia mais só. Fez da sua vida, após a presença de Isidore, um ritual. Limpava o tanque, verificava se ele estava vedado (porém, ficava com pena em vê-lo assim, como se estivesse sem respiração), dava comida antes de sair para o trabalho e quando chegava dele. Seu congelador estava repleto de sardinhas e camarões sem casca, e quando dava tempo, comprava peixinhos vivos para alimentá-lo. Assim, seguia a sua vida.
À noite, ficava namorando seu novo amigo. Queria conhecê-lo melhor. Saber dos seus hábitos diurnos e noturnos, e a cada dia, ficava encantada e envolvida com as descobertas. Lembrou-se da fala do vendedor, incisivo: “Não se apega muito, os cefalópodes duram pouco, entre um a dois anos.” Não queria acreditar nisso, já estava completamente apaixonada. Toda noite, sentava ao lado do aquário e conversava com Isidore. Acreditava que ele respondia às suas perguntas, às suas dúvidas.
Quando ele foi morar com ela, segundo a documentação, ele tinha 5 meses, e depois de 5 meses juntos, já criou uma relação de intimidade, de um sentir a falta do outro. Parece que ele sabia o horário preciso da sua chegada, assim, soltava uma tinta laranja, só para dizer a ela que estava feliz com sua chegada, e ela começava a cantar e começava o ritual de preparar a alimentação de Isidore, mas antes, ela tomava um banho, hidratava a pele alva e virgem e ficava de calcinha e sutiã só para vê-lo mexer todos seus oito braços, e ela já ousava, tocava nele, acariciava ele.
Isidore Ducasse passou a ser seu confidente das horas nuas e longas. Ele sabia como hipnotizar sua amada, não só pelas cores, laranja, amarelo e vermelho, o que ela não sabia, não havia tido a ela ao comprar o polvo, ele era um thaumoctupus mimicus, e assim, conseguia envolvê-la, deixá-la seduzida pelos longos e fortes braços, pelo perfume inebriante das tintas que saiam do seu corpo. Sua visão binocular permitia enxergar o corpo de Virgínia. Ela estava toda hipnotizada, seu corpo era brasa quente, e ela disse a ele: “Surpresa! Mais de uma surpresa. A primeira, comprei um presente a você, uma réplica da xilogravura do artista japonês Katsushika Hokusai, O sonho da mulher do pescador.” E ela mostra a ele, puxa a poltrona para mais perto do aquário, de calcinha e sutiã, ela também estava camuflada para o perigo da sedução. A outra surpresa, disse a ele que iria tirar a vedação do tanque, abri-lo, deixá-lo livro, assim, poderia sair e sentar ao lado dela, assim, conseguiria os abraços e amassos tão desejados. Desejava que ele a levasse para cama, a despisse, e que cada braço a tocasse, nos seus mamilos, na sua boca, na sua vagina, nas suas pernas, no seu torso, nos seus cabelos, e a possuísse. Ela estava lubrificada e pronta para recebê-lo.
Começou a dançar para ele, a seduzi-lo. Tirou o sutiã e ficou com a imagem da mulher sendo possuída pelo polvo.
Estava tão hipnotizada, rodava, rodava, como uma dervixe, quando parou e sentou, sentiu que seus seios estavam sendo tocados, seus cabelos sendo mexidos, suas pernas sendo abertas e enlaçadas, seu pescoço envolvido por dois braços fortes e esguios, começou a ficar sem ar, não conseguia respirar, mas mesmo assim, ainda desejava mais e mais aquele corpo octópodes, a cor da tinta vermelha se espalhava pelo corpo branco como a nuvem daquela noite cósmica, estava sem calcinha, ele a rasgou com seu bico quitinoso, ela o queria mais, a cada movimento gelatinoso, ela mexia o corpo mesmo sentido dores pela força dos braços do macho Isidore Ducasse, era como uma autoasfixia. A fricção dos braços entre suas coxas, a fez pronunciar palavras obscenas e sua respiração ofegante a deixava preparada para o gozo.
Isadore Ducasse também estava preparado para receber o corpo de Virginia, jorrou seu gozo vermelho sobre o corpo virgem de Virgínia e não teve piedade e nem remorso, e no ato do gozo, a tinta vermelha e o sangue se misturavam, com a mesma intensidade de desejos e vapores. Uma camuflagem perfeita entre Isadore Ducasse e Virgínia.

O sonho da mulher do pescador, de Katsushika Hokusai



Mauricio Gomes, natural da cidade de Ipameri, estado de Goiás, há 10 anos mora em São Paulo, é professor de Literatura, coordenador pedagógico e jornalista cultural. Seu primeiro livro (Des) Caso com a poesia: Inquietações foi lançado em 2012. Em Portugal, participou de uma coletânea de poemas, o nome do livro é Poética. O seu trabalho poético também está na Revista de poesia e arte contemporânea Mallarmargens e na Revista portuguesa Triplov de Artes, Religiões e Ciências.  Em 2014 participou do Festival de Poesia Internacional no México e do Festival de poesia da Unesco, também no México. Em junho de 2015, participou do 2º Encontro de poesia Internacional, novamente no México e em 2016, foi convidado a participar do Festival de Poesia Internacional em Marrocos.