terça-feira, 16 de outubro de 2018

[Conto] Quebra-galho, de Leandro Dupré


Quebra-galho



            — Deus salve a Rainha, misericórdia!
            Ah!!! Ah... Como assim? Caramba, que susto: felizmente foi só um sonho.
            Puxa, mas a cena segue muito nítida de tão aterrorizante: estava eu cumprindo a minha dura jornada como mordomo real a polir toda a refinada prataria do palácio quando eu ouvi o estalido. Não podia ser outro. Mesmo muitos andares acima eu poderia escutar aquela sagrada porta sendo violada.
            Deslizei degraus abaixo e só então percebi que não havia deixado a chave facilmente à mão. Mas não sei porque me preocupei com isso afinal: de fato a porta já tinha sido aberta. E a imaculada estátua do macaco de esmeralda não estava lá.
            Deus me livre de roubo tão pernicioso, não posso nem pensar numa coisa dessas. Por mais apreço que a Rainha tenha pelos meus quarenta anos de serviço, ainda assim ela não conseguiria me perdoar. A Majestade venera esse macaco tanto quanto a própria vida ou senão não manteria a chave da sala que o protege somente comigo e com mais alguns poucos familiares. Mas entre eles e eu você já sabe para quem iria sobrar...
            Ainda lembro do dia que a Rainha me chamou de lado para entregar a chave: ela contou que há vários anos havia recebido uma visita de um renomado sheik árabe interessado em fechar um importante contrato petrolífero. Com a ideia de selar uma parceria mais rentável que a realizada pelos países vizinhos, a realeza logo tratou de aprovar a proposta. E, apesar do expressivo sucesso do acordo, o grande saldo positivo para a Majestade foi o imponente presente que recebeu: um macaco sentado na posição de lótus com as mãos em formato de viseira ao redor dos olhos como se tapasse a luz solar para poder enxergar mais adiante. E o melhor, todo feito de valiosas esmeraldas da mais fina espécie. O sheik explicou que este era um símbolo de boa sorte, o olhar à frente do símio denotaria a capacidade visionária do reinado. Sendo assim, a Rainha não demorou em preencher uma das várias câmaras secretas (secretas até de nós, empregados) presentes no castelo. E agora eu acabava de ser nomeado como um dos guardiões da principal fonte de bem-aventurança de todo o país.
            Mas devo confessar: desde o início eu não me identifiquei muito com esse macaco. Apesar de a Rainha admirar toda a sua simbologia, até hoje eu não consigo perceber a mensagem do sheik por trás daqueles olhos petrificados. Eles me parecem irônicos, zombeteiros... Parecem debochar de tudo à minha volta. Como se suas mãos ao redor dos olhos me dissessem “Lero-lero, você não me pega!”.
            Eu dou de costas, tento afastar esses pensamentos tolos e me concentrar na limpeza do recinto. Mas então fica ainda pior: é estranho. Eu sinto que o macaco fica me chamando, pedindo para que brinque com ele. Nessas horas sempre tenho a angustiante impressão de que as suas mãos resolveram tapar os seus olhos só para me obrigar a virar e pegá-lo desprevenido. Porém, quando vejo, o macaco está sempre com os dedos em forma de viseira, aparentando caçoar ainda mais da minha cara.
            Mas por que estou pensando nisso tudo a essa hora da madrugada? O sonho já acabou, é bom começar a dormir de novo porque o dia amanhã será bem pesado.
            Ah, boa noite...
Droga, este lado não está bom, vira!
Vixi, ainda pior, vira!
Vira, vira, vira e a ideia continua me atormentando, diacho!
Olha que eu não sou um homem muito supersticioso. Mas este sonho não pode ter sido um sinal? Será que estão planejando fazer algo contra o macaco justo nesta noite? Ah, que droga, a curiosidade não vai me deixar descansar. Vou dar só uma olhadinha rápida, só para garantir.
Acendo as luzes? Melhor não, pode chamar muito a atenção dos outros. Evito fazer barulho? Acho que sim, se alguém despertar por causa disso vão achar que já estou ficando caduco ao perambular sozinho no meio da madrugada.
Vamos lá, primeira porta... Ok! Mais um pouquinho, vamos. Segunda porta... Opa!
Fez um barulhinho ao abrir. Quase imperceptível, mas fez.
Será que alguém ouviu? E agora? Ai, melhor correr mais com isso.
Esses ruídos podem justamente ter alertado o suposto gatuno. Ele já sabe que vou para lá. Preciso ser rápido, mais rápido!
Pronto, aqui cheguei! Pelo menos a porta estava trancada, isto já é um bom presságio.
Entro com impaciência na sala e... Ufa, lá está ele.
Missão cumprida, seu sorriso maroto está a salvo.
Está mesmo?
Se o assaltante estiver me vigiando vai somente esperar que eu suba para então executar o seu furto. Simples assim. Eu não posso facilitar a vida desse larápio. Tenho que encontrar um lugar mais seguro para o macaco.
Puxa, mas como você é pesado! E não fique olhando assim para mim, eu estou apenas zelando pela sua segurança. Se não me engano a Rainha afirmou algo sobre existir uma sala depois desta que poderia ser usada em casos de emergência. Mas como era mesmo que se chegava a ela? Deixa eu ver, deve estar por aqui em algum lugar...
Claro! Era o termômetro que tem um botãozinho minúsculo!
É isso aí, liberei a passagem. Pode ficar tranquilo, macaquinho, você vai ficar bem...
— O que significa isso, James?!
Quê?! O que a Majestade está fazendo aqui a essa hora junto com Andy e Robert, dois guardas reais?
— Eu sabia, eu sabia que a minha intuição ainda estava apurada — explicou a Rainha. — Acordei sobressaltada com a nítida impressão de que afanavam o meu precioso macaco.
— Vossa Majestade também sonhou com isso?
— Pois sim. E vejo que estava certa. Bem que os outros me alertaram que você não andava bom da cabeça, James, mas nunca imaginei que tivesse perdido completamente o juízo. Guardas, levem-no!
— Não, não!!! Vocês entenderam tudo errado!
Mas os seguranças logo me imobilizaram com facilidade. E devolveram à Rainha o macaco de esmeralda, que me deixava exibindo um sorriso ainda mais irônico e diabólico.

Leandro Dupré Cardoso é administrador e escritor, autor dos livros de ficção "A era i-Racional", "O rico, a velha e o vagabundo", entre outros.