quarta-feira, 20 de abril de 2016

A poesia ajuda a ter esperança

Poesia ajuda a ter esperança. Quem diz isso é a escritora Lucia Bettencourt na entrevista da Ivani Cardoso para a newsletter da Feira do Livro de Frankfurt.
Lúcia Bettencourt é escritora e ensaísta. Recebeu o Prêmio SESC por seu livro de contos A secretária de Borges (Record, 2005), o prêmio de ensaio da Academia Brasileira de Letras pelo volume O Banquete: uma degustação de textos e imagens (Vermelho Marinho, 2012), além dos prêmios Josué Guimarães e Osman Lins pelas histórias depois incluídas em Linha de Sombra (Record, 2008). É autora ainda do romance O amor acontece (Record, 2012) e dos infantis: O sapo e a sopa, A cobra e a corda, Botas e bolas e A oca e a toca (Escrita Fina).

Confira a íntegra da entrevista:
Quando você decidiu ser escritora? 

Esta é a pergunta que nunca sei responder. Escrever não me parece que seja uma decisão, é uma forma de expressão, e creio que seja inata. Posso lhe dizer, por exemplo, que tomei a decisão de estudar piano, pois tenho a fantasia de, algum dia, tocar o concerto nº 1 de Tchaikowski de maneira reconhecível, pelo menos. Resolvi, comprei um piano, contratei um professor, mas… por mais que me esforce, não saio dos exercícios básicos. Já a escrita, era nela que me refugiava e onde sempre me senti à vontade. Escrevo desde menina, historinhas, diários, cartas, ensaios, pequenos textos teatrais. Só comecei a publicar, no entanto, graças ao prêmio SESC, em 2005.

Quem são seus autores preferidos? 

Sou volúvel, me apaixono por uns e outros, mas, sem dúvida, fui formada pelos clássicos.  Monteiro Lobato, Machado de Assis e Eça de Queirós, seriam meus alicerces. Depois o encantamento com a irreverência de Oswald e o modernismo.  E a sorte de ter lido Cortázar e Borges, de conhecer as Mil e uma noites, de me ter casado com um homem que adorava ler peças teatrais e que me apresentou às peças europeias, de Brecht a Becket. Leio, amo, me apaixono por autores modernos – como não me deixar encantar por Kundera, MacEwan, Houlebecq, Oz? No entanto, volto sempre a velhos conhecidos, como Proust e Alencar, Camões e Shakespeare. E, de vez em quando, descubro um autor como Pierre Michon, conciso e interessante, e me deixo fascinar.  Falei, falei, e ainda quero mencionar outros, como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, Osman Lins e Antonio Callado, todos os cronistas fabulosos que me ensinaram que, mesmo os textos mais curtos, podem ser plenos e satisfatórios.  E os adoráveis Drummond e João Cabral? Os Mários, de Andrade e Quintana?  Como se pode notar, não consigo responder.

De onde veio a inspiração para esse livro sobre Rimbaud?

Creio que foi do acaso. Dirijo um grupo de leitura há muitos anos, e senti a necessidade de oferecer a minhas companheiras um pouco de poesia. Ao ir à livraria, procurar os poemas de Rimbaud, encontrei dois livros que me fizeram querer conhecer mais sobre o poeta: a edição da sua Correspondência, feita pelo grande Ivo Barroso e um pequeno relato, de Pierre Michon, chamado Rimbaud, o filho. Li primeiro o romance e depois mergulhei na leitura das cartas e dos poemas. Fiquei absolutamente fascinada.

Você, de alguma forma, conhecia a obra ou o autor?

Conhecia muito pouco a obra de Rimbaud, e praticamente nada da vida dele, apenas os boatos e fofocas: sua relação com Verlaine, seu misterioso abandono da literatura, suas aventuras na África. Ignorava por completo as circunstâncias de sua morte e até mesmo a falta de repercussão de sua obra durante a vida do autor.

Como foi o processo de escrever esse livro?

Escrevi o início do livro com alguma rapidez, pois estava muito comovida com as leituras que tinha feito. Depois tive que interromper o trabalho, devido a outros compromissos. Um deles envolvia uma viagem à Poitiers, na França, e foi então que decidi ir aos locais onde Rimbaud tinha vivido: Charleville, sua cidade natal: Paris, o centro literário que desejou conquistar com seus versos, Londres e Bélgica. Planejei uma visita ao Harrar, na Etiópia, porém a morte de um amigo acabou por me frustrar esse plano. Visitei Harrar e Aden pela internet, apenas. Essas viagens me trouxeram outros livros e novas perspectivas para a obra, que retomei e finalizei no início de 2013. Li muito. Mas, como não pretendia escrever uma obra acadêmica, e sim um romance, li também muitas coisas que se relacionavam obliquamente com o poeta.

Muitos roqueiros citam Rimbaud, por que?

Sim, li biografias de roqueiros influenciados pelo poeta. Não admira que seja tão admirado pelos letristas de rock, de Renato Russo a Patti Smith: essa dor e falta de conformidade, essas “temporadas no inferno” pelas quais todos nós passamos, são transformadas em hinos que dão algum sentido ao desespero moderno O que mais me chama a atenção é a afirmação, quase unânime, de que esses artistas foram “salvos” pelo poeta.  Creio que a modernidade de Rimbaud, autor do magnífico verso “por delicadeza perdi minha vida”, foi capaz de ensinar a seus seguidores o valor da contestação e da resistência, a importância da dor e do desespero num mundo cada vez mais material e indiferente ao genuíno talento.

A mitologia aparece muito na obra. Por que essas referências?

O Rimbaud que criei é muito próximo de Odisseu, o herói cuja façanha principal é oferecer ao mundo o valor da narrativa. Tal como Odisseu, ele é perseguido pelos deuses, seus empreendimentos são frustrados. Odisseu é o menos “heroico” de todos os heróis gregos. O que o salva é a inteligência e as narrativas que elabora. Rimbaud também naufragou de projeto em projeto, e é quase uma ironia que, ao voltar para a França, para morrer, seus poemas estivessem começando a ser descobertos e apreciados pelo público. Também quis ressaltar o lado mítico que o poeta parece ter conquistado por sua recusa em continuar a fazer poesia. Tal como um titã, luta contra os deuses que o perseguem e percebe que a maior ferida que pode infringir à divindade é calar em si o dom que lhe coube: o poético/profético.

Autor e personagens desenvolvem uma relação de intimidade forte?

A relação mais forte que conheço é a do leitor com a obra lida, pois o texto se torna propriedade de quem o lê. Um livro bem lido nos modifica e nos transforma, incorpora-se em nossa experiência.  Sou uma leitora apaixonada e fico feliz que esse traço meu apareça naquilo que escrevo. Essa minha simbiose apaixonada com a leitura, dá ao texto a minha interpretação e a minha fantasia.

Qual é a modernidade do poeta?

Rimbaud dizia que é necessário ser absolutamente moderno, e ele, sem dúvida, é tão moderno que, mesmo tendo vivido no século XIX, continua válido no século XXI. Nesta nossa sociedade de aparências e de felicidade obrigatória, Rimbaud, messianicamente, resgata nosso direito ao fracasso. Fracassar, naufragar e se reinventar é possível e é até mesmo louvável, pois é apenas assim que a experiência humana se amplia. Apagar a dor é abdicar da existência e transformar-nos em máscaras jovens e sorridentes, incapazes de agir. Só podemos representar e pousar para selfies. O fracasso e a dor que Rimbaud simboliza me deram a motivação, mas o deflagrador da escrita foi, sem dúvida, a enorme, a desmesurada sensação de injustiça que senti ao ler sobre sua agonia final. A solidão e pobreza de seu enterro me deu o desejo de voltar a encená-lo, para que todos, ao lerem, possam prestar suas últimas homenagens.

O que os livros trazem para você?

Todo novo livro, toda nova história é um regresso à uma espécie de crença de que a literatura pode nos resgatar e nos elevar um pouco acima das mesquinharias de nosso cotidiano. O ser humano não é apenas esse que desempenha as funções necessárias para sua sobrevivência, somos superlativamente humanos quando sonhamos. E, quando sonhamos sonhos compartilhados em livros, exercemos não apenas nossa humanidade, mas nosso reconhecimento como humanidade.

Como você define a importância de Rimbaud para a poesia?

Rimbaud ampliou as fronteiras do poético. Assim como Picasso, que dominava as técnicas do desenho à perfeição para poder manipular suas criações, Rimbaud podia criar em qualquer formato métrico tradicional, até mesmo em Latim era capaz de versejar. Mas ele rompeu com esses padrões, denunciou sua artificialidade, infectou o poema com palavras chulas, rompeu com tradições e deixou a poesia respirar livre, vigorosa e contundente. E criou poemas em prosa, cheios de vigor e de emoção.

O que ficou de melhor nesse livro para você?

O envolvimento foi tanto que, mesmo ao final do processo de escrita, às vezes confesso que tinha medo de encontrar o espírito de Rimbaud rondando pela sala, junto ao local onde escrevia. Muitas vezes precisava “fugir”, sair de casa, dar uma volta pela rua, para recuperar o equilíbrio necessário para não fazer um livro piegas e choroso. Sofri com ele, e por ele, mas valeu a pena atravessar o deserto na sua companhia.

Ivani Cardoso é de Santos, formada em Jornalismo e Direito, trabalhou nos jornais O Estado de S.Paulo, A Tribuna e Cidade de Santos. Há treze anos mora em São Paulo e atua como assessora de imprensa, principalmente na divulgação de livros e eventos literários. É editora do Publishing Perspectives educação (newsletter semanal da Feira do Livro de Frankfurt no Brasil) e tem a coluna Livros & Mídia no site Publishnews.
Fonte: Publishing Perspectives educação. 

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