Quebra-galho
— Deus
salve a Rainha, misericórdia!
Ah!!!
Ah... Como assim? Caramba, que susto: felizmente foi só um sonho.
Puxa, mas
a cena segue muito nítida de tão aterrorizante: estava eu cumprindo a minha
dura jornada como mordomo real a polir toda a refinada prataria do palácio
quando eu ouvi o estalido. Não podia ser outro. Mesmo muitos andares acima eu
poderia escutar aquela sagrada porta sendo violada.
Deslizei
degraus abaixo e só então percebi que não havia deixado a chave facilmente à
mão. Mas não sei porque me preocupei com isso afinal: de fato a porta já tinha
sido aberta. E a imaculada estátua do macaco de esmeralda não estava lá.
Deus me
livre de roubo tão pernicioso, não posso nem pensar numa coisa dessas. Por mais
apreço que a Rainha tenha pelos meus quarenta anos de serviço, ainda assim ela
não conseguiria me perdoar. A Majestade venera esse macaco tanto quanto a
própria vida ou senão não manteria a chave da sala que o protege somente comigo
e com mais alguns poucos familiares. Mas entre eles e eu você já sabe para quem
iria sobrar...
Ainda
lembro do dia que a Rainha me chamou de lado para entregar a chave: ela contou
que há vários anos havia recebido uma visita de um renomado sheik árabe
interessado em fechar um importante contrato petrolífero. Com a ideia de selar
uma parceria mais rentável que a realizada pelos países vizinhos, a realeza
logo tratou de aprovar a proposta. E, apesar do expressivo sucesso do acordo, o
grande saldo positivo para a Majestade foi o imponente presente que recebeu: um
macaco sentado na posição de lótus com as mãos em formato de viseira ao redor
dos olhos como se tapasse a luz solar para poder enxergar mais adiante. E o
melhor, todo feito de valiosas esmeraldas da mais fina espécie. O sheik
explicou que este era um símbolo de boa sorte, o olhar à frente do símio
denotaria a capacidade visionária do reinado. Sendo assim, a Rainha não demorou
em preencher uma das várias câmaras secretas (secretas até de nós, empregados)
presentes no castelo. E agora eu acabava de ser nomeado como um dos guardiões
da principal fonte de bem-aventurança de todo o país.
Mas devo
confessar: desde o início eu não me identifiquei muito com esse macaco. Apesar
de a Rainha admirar toda a sua simbologia, até hoje eu não consigo perceber a mensagem
do sheik por trás daqueles olhos petrificados. Eles me parecem irônicos,
zombeteiros... Parecem debochar de tudo à minha volta. Como se suas mãos ao
redor dos olhos me dissessem “Lero-lero, você não me pega!”.
Eu dou de
costas, tento afastar esses pensamentos tolos e me concentrar na limpeza do
recinto. Mas então fica ainda pior: é estranho. Eu sinto que o macaco fica me
chamando, pedindo para que brinque com ele. Nessas horas sempre tenho a
angustiante impressão de que as suas mãos resolveram tapar os seus olhos só
para me obrigar a virar e pegá-lo desprevenido. Porém, quando vejo, o macaco
está sempre com os dedos em forma de viseira, aparentando caçoar ainda mais da
minha cara.
Mas por
que estou pensando nisso tudo a essa hora da madrugada? O sonho já acabou, é
bom começar a dormir de novo porque o dia amanhã será bem pesado.
Ah, boa
noite...
Droga, este lado não está bom, vira!
Vixi, ainda pior, vira!
Vira, vira, vira e a ideia continua me
atormentando, diacho!
Olha que eu não sou um homem muito
supersticioso. Mas este sonho não pode ter sido um sinal? Será que estão
planejando fazer algo contra o macaco justo nesta noite? Ah, que droga, a
curiosidade não vai me deixar descansar. Vou dar só uma olhadinha rápida, só
para garantir.
Acendo as luzes? Melhor não, pode chamar muito
a atenção dos outros. Evito fazer barulho? Acho que sim, se alguém despertar
por causa disso vão achar que já estou ficando caduco ao perambular sozinho no
meio da madrugada.
Vamos lá, primeira porta... Ok! Mais um
pouquinho, vamos. Segunda porta... Opa!
Fez um barulhinho ao abrir. Quase
imperceptível, mas fez.
Será que alguém ouviu? E agora? Ai, melhor
correr mais com isso.
Esses ruídos podem justamente ter alertado o
suposto gatuno. Ele já sabe que vou para lá. Preciso ser rápido, mais rápido!
Pronto, aqui cheguei! Pelo menos a porta estava
trancada, isto já é um bom presságio.
Entro com impaciência na sala e... Ufa, lá está
ele.
Missão cumprida, seu sorriso maroto está a
salvo.
Está mesmo?
Se o assaltante estiver me vigiando vai somente
esperar que eu suba para então executar o seu furto. Simples assim. Eu não
posso facilitar a vida desse larápio. Tenho que encontrar um lugar mais seguro
para o macaco.
Puxa, mas como você é pesado! E não fique
olhando assim para mim, eu estou apenas zelando pela sua segurança. Se não me
engano a Rainha afirmou algo sobre existir uma sala depois desta que poderia
ser usada em casos de emergência. Mas como era mesmo que se chegava a ela?
Deixa eu ver, deve estar por aqui em algum lugar...
Claro! Era o termômetro que tem um botãozinho
minúsculo!
É isso aí, liberei a passagem. Pode ficar
tranquilo, macaquinho, você vai ficar bem...
— O que significa isso, James?!
Quê?! O que a Majestade está fazendo aqui a
essa hora junto com Andy e Robert, dois guardas reais?
— Eu sabia, eu sabia que a minha intuição ainda
estava apurada — explicou a Rainha. — Acordei sobressaltada com a nítida
impressão de que afanavam o meu precioso macaco.
— Vossa Majestade também sonhou com isso?
— Pois sim. E vejo que estava certa. Bem que os
outros me alertaram que você não andava bom da cabeça, James, mas nunca
imaginei que tivesse perdido completamente o juízo. Guardas, levem-no!
— Não, não!!! Vocês entenderam tudo errado!
Mas os seguranças logo me imobilizaram com
facilidade. E devolveram à Rainha o macaco de esmeralda, que me deixava
exibindo um sorriso ainda mais irônico e diabólico.
Leandro Dupré Cardoso é administrador e escritor, autor dos livros de ficção "A era i-Racional", "O rico, a velha e o vagabundo", entre outros.
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